12 de jan. de 2012

O livro que dá medo



Por sugestão de Mario Vargas Llosa (mais uma), li nas férias “Madame Bovary”, romance clássico que não conhecia pessoalmente. As quatrocentas páginas voaram em poucos dias. Pouco antes de dormir, dei cabo das últimas linhas e me deitei. Sem saber, cometi um erro. Pesadelos indefinidos piscaram durante o sono todo e claro que me despertei com susto. Descobri que tenho medo de Madame Bovary. 

Flaubert fingiu contar uma comédia de costumes. Essa é a versão medíocre de seu livro. O tema, digo eu, é justamente a mediocridade e o efeito canceroso que ela tem sobre as pessoas. Não há quem se salve disso em “Madame Bovary”. O narrador, os personagens, as emoções, são todos filhos baratos de uma pretensa profundidade. 

O autor criou um universo tão afundado em sua insignificância, mas tão capaz em ampliá-la como um Bat-sinal projetado nas nuvens, que uma raiva subjacente começa a nascer conforme avança a leitura. De onde vem essa vontade de esganar os pescoços desses pequenos-burgueses? Talvez seja causado pela natureza da mediocridade. Ela não se contenta em ser e gritar, precisa reclamar o mundo como seu para continuar viva. E, por definição, a mediocridade conquista a média das pessoas, do “inconsciente coletivo”, do óbvio. Seu maior poder é o de convencer a todos (a maior parte de todos) de que toda a sabedoria necessária para viver está ali, naquele núcleo aparentemente coerente de pensamentos, opiniões e desejos. Na verdade, é um monte de pedaços desconexos e mal-ajambrados de metafísica feita de plástico. Nada mais do que convenções repetidas mil vezes até que se tornassem verdade. 

Três personagens representam o universo do livro:

O boticário: Especialista em coisa nenhuma. Um falso ilustrado que fala rasamente sobre tudo. De tanto falar, no entanto, convence a todos de que sabe das coisas. Não à toa, escreve artigos para o jornal local. 

O médico Bovary: Inofensivo até demais. Não pergunta, não questiona. Nunca está errado (quase nunca) porque nunca diz nada com firmeza. Serve de vácuo perfeito para a vaidade do boticário. Sua placidez asinina enerva sua já insatisfeita esposa ainda mais e a impele a fazer tudo o que faz no enredo. 

Madame Bovary, a esposa: É quem mais se veste dessa mediocridade. Transforma sua pouca capacidade mental e espiritual (emocional, por que não?) em tramas perversas de traição. Gasta o dinheiro que não tem em nome de um amor que sabe existir apenas nos romances baratos. 

“Madame Bovary” me causa pesadelos. Me assusta. Me mete medo porque é como um fantasma que assombra tempos distantes e ao mesmo tempo o presente. É a mesquinhez de alma irradiando-se impiedosamente pelos eixos do tempo e dos costumes, montada na mediocridade perversa que o dinheiro cria. Daquela França do século XIX até os dias de hoje, ficamos indubitavelmente mais ricos. Quem serão, então, a Madame Bovary, o boticário e o Dr. Bovary dos nossos tempos? Ainda vou perder muito sono.

2 comentários:

Lu Tamaki disse...

hehehe amei!
como é bom ler textos que não são aqueles "vou explicar por que é bom / ruim"... está tudo perfeitamente entendido.

ah sim: "Não à toa, escreve artigos para o jornal"... acho que é minha parte favorita hahaha

Unknown disse...

fico feliz com o comentário, Lu. deixo a crítica literária para os literatos. crítica aqui, só a autocrítica, como você bem percebeu.