3 de mai. de 2010

Quase resenha: Kiki de Montparnasse

É incômodo o conceito de “gênio”. Eles existem e há provas disso por todos os lugares para os quais se olha, mas tudo o que vem atrelado a essa palavra é extremamente desagradável. Uma aura de infalibilidade, de prepotência, de divindade. O gênio é um acaso, um raio que caiu acidentalmente numa árvore qualquer e a pôs em fogo, queimando sua madeira e iluminando seus arredores escuros.

A graphic novel Kiki de Montparnasse (de Catel Muller e José-Louis Boucquet) não nega a existência dessas pessoas supostamente especiais. Aliás, seu tema não é a arte em si, mas sim a vedete, aprendiz de artista e musa Alice Prin, a Kiki do título. Mas o favor que ela faz para relativizar a nossa palavra-problema é enorme. Kiki posou para Modigliani, foi namorada de Man Ray, Ernest Hemingway escreveu o prefácio de suas memórias. Nas páginas da HQ, todos esses incontestes cânones são homens com afazeres. São amantes, admiradores.

Man Ray, astro do surrealismo, chora ao final, lamentando a morte de sua ex-companheira, frequente objeto artístico de seus filmes e fotografias. Era uma mulher, com carnes desejadas por toda Montparnasse, e ossos imprevisíveis, capazes de pertubar o mais asceta dos gênios na Paris em ebulição dos anos 30. Gênios cheiradores de cocaína, frequentadores de bordéis, beberrões. Homens em plena execução de suas funções corporais e sociais. Todos estavam ali nos mesmos momentos, fugindo das mesmas coisas e brigando juntos contra ou a favor do Dada.

Nem para os gregos, tão afins das falhas humanas, poderiam se comparar aqueles homens a deuses quaisquer. Kiki era deusa, mal-educada, atirada, desenvolta demais. Em torno dela gravitavam aquelas mentes brilhantes frente a frente com um quadro ou conjunto de lentes, mas tão fracas quando ofuscadas pelo corpo em chamas da menina de Borgonha. Gênios, idiotas, fracos.

Nas habilidades que me cabem, nunca fui chamado de gênio, tampouco aspiro a isso. Sou homem como Man Ray e Modigliani, como Hemingway, como Picasso. Kiki é a verdade que inflama a vida, que dá sentido e guia as mãos daqueles que veneramos em museus e bibliotecas semelhantes a igrejas. Eu também chamo pessoas de gênios, mas por necessidade de afirmar que suas habilidades são de excelência, que suas artes e capacidades sintetizam a vida de uma maneira que outros não veem. Gênio é aquele que consegue despir o vulgar de suas amarras e colocar à nossa frente o que sentimos quando estamos sozinhos tentando descobrir o que somos. Cada época tem o seu panteão sagrado, cada Paris, sua Kiki de Montparnasse.

Kiki de Montparnasse (2010)
Catel Muller e José-Louis Boucquet  
Galera Record
416 páginas
R$ 54,90

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