Por sugestão de Mario Vargas Llosa (mais uma), li nas férias “Madame
Bovary”, romance clássico que não conhecia pessoalmente. As quatrocentas
páginas voaram em poucos dias. Pouco antes de dormir, dei cabo das últimas
linhas e me deitei. Sem saber, cometi um erro. Pesadelos indefinidos piscaram
durante o sono todo e claro que me despertei com susto. Descobri que tenho medo
de Madame Bovary.
Flaubert fingiu contar uma comédia de costumes. Essa é a
versão medíocre de seu livro. O tema, digo eu, é justamente a mediocridade e o
efeito canceroso que ela tem sobre as pessoas. Não há quem se salve disso em
“Madame Bovary”. O narrador, os personagens, as emoções, são todos filhos
baratos de uma pretensa profundidade.
O autor criou um universo tão afundado em sua insignificância,
mas tão capaz em ampliá-la como um Bat-sinal projetado nas nuvens, que uma
raiva subjacente começa a nascer conforme avança a leitura. De onde vem essa
vontade de esganar os pescoços desses pequenos-burgueses? Talvez seja causado
pela natureza da mediocridade. Ela não se contenta em ser e gritar, precisa
reclamar o mundo como seu para continuar viva. E, por definição, a mediocridade
conquista a média das pessoas, do “inconsciente coletivo”, do óbvio. Seu maior
poder é o de convencer a todos (a maior parte de todos) de que toda a sabedoria
necessária para viver está ali, naquele núcleo aparentemente coerente de
pensamentos, opiniões e desejos. Na verdade, é um monte de pedaços desconexos e
mal-ajambrados de metafísica feita de plástico. Nada mais do que convenções
repetidas mil vezes até que se tornassem verdade.
Três personagens representam o universo do livro:
O boticário: Especialista
em coisa nenhuma. Um falso ilustrado que fala rasamente sobre tudo. De tanto
falar, no entanto, convence a todos de que sabe das coisas. Não à toa, escreve
artigos para o jornal local.
O médico Bovary: Inofensivo
até demais. Não pergunta, não questiona. Nunca está errado (quase nunca) porque
nunca diz nada com firmeza. Serve de vácuo perfeito para a vaidade do
boticário. Sua placidez asinina enerva sua já insatisfeita esposa ainda mais e
a impele a fazer tudo o que faz no enredo.
Madame Bovary, a
esposa: É quem mais se veste dessa mediocridade. Transforma sua pouca
capacidade mental e espiritual (emocional, por que não?) em tramas perversas de
traição. Gasta o dinheiro que não tem em nome de um amor que sabe existir
apenas nos romances baratos.
“Madame Bovary” me causa pesadelos. Me assusta. Me mete medo
porque é como um fantasma que assombra tempos distantes e ao mesmo tempo o
presente. É a mesquinhez de alma irradiando-se impiedosamente pelos eixos do
tempo e dos costumes, montada na mediocridade perversa que o dinheiro cria.
Daquela França do século XIX até os dias de hoje, ficamos indubitavelmente mais
ricos. Quem serão, então, a Madame Bovary, o boticário e o Dr. Bovary dos
nossos tempos? Ainda vou perder muito sono.
2 comentários:
hehehe amei!
como é bom ler textos que não são aqueles "vou explicar por que é bom / ruim"... está tudo perfeitamente entendido.
ah sim: "Não à toa, escreve artigos para o jornal"... acho que é minha parte favorita hahaha
fico feliz com o comentário, Lu. deixo a crítica literária para os literatos. crítica aqui, só a autocrítica, como você bem percebeu.
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