Posso te chamar de
Bob? Não? Por favor, deixe. Já me sinto parte de sua vida. Não, não nos
conhecemos ainda. Quer dizer, você não me conhece, mas eu conheço você. Fiquei
ao seu lado durante alguns momentos difíceis. Fiquei feliz por você. Posso te
chamar de Bob? Não se assuste, eu sou boa pessoa.
É estranho ler uma autobiografia de alguém que você admira.
Todas aquelas dúvidas sobre se tal música queria dizer isso ou se tal disco foi
gravado naquela situação se dissipam e resta apenas a voz de um ser humano. Antes havia um
sentimento místico de que aquelas palavras, os arranjos, as guitarras, eram
fruto de um milagre, de uma alma elevada que recebeu casualmente uma iluminação
intensa que se tornou aquela música da qual tanto gostamos, que tão bem expressa
nossa raiva/dor/felicidade/angústia/ressentimento.
Acontece um certo desencantamento e vemos que as pessoas são só pessoas. Em
rompantes de mágoa depois de brigar com o namorado, sentam-se em um quarto
escuro e remoem os sentimentos, sofrem as coisas milhares de vezes até que saia
uma progressão de acordes, aliterações contundentes, um refrão afiado. Claro
que essa não é a maneira de compor de todos os artistas. Estou falando de Bob
Mould, ex-líder de bandas seminais como Hüsker Dü e Sugar, frontman talentoso e
compositor intenso.
Lendo sua recém-lançada biografia (co-escrita com o
jornalista Michael Azerrad), fui forçado a me deparar com um relato muito cru
de sua vida. O subtítulo do livro “A trail of rage and melody” pode ser visto
como sinal de glamourização da vida de subrockstar, mas depois de ler o livro,
vê-se que se trata exatamente do oposto disso: da realidade chata, fria e cruel.
Mould viveu em função de criar sua música a partir da raiva, da inconformidade,
dos traumas. Algo que parece muito “cool” para aqueles que acreditam em
bobagens do naipe de “Clube dos 27”, mas que não é. Trata-se de uma vida real
descrita nas mais de trezentas páginas do livro. Trata-se de os fãs se
confrontarem com o fato de seus ídolos não são deuses, não são iluminados. Não
no sentido religioso, transcendental. Claro que eles atingem momentos assim em
discos, shows, mas o ínterim é muito mais sofrido, chato e doloroso do que os
videoclipes deixam transparecer.
Bob teve de lidar com a homossexualidade , com o trauma de
uma família violenta, da incapacidade de perceber os limites de seu corpo e com
a inocência de alguém que acha que nada pode parar a boa música. Como a vida, o
livro tem um ritmo irregular, empolgante no começo e repetitivo no final. Para
quem se interessa mais pela música, a primeira metade da autobiografia é uma
paulada: ele descreve com detalhes shows, sessões de gravação, brigas,
participações em programas de televisão. Depois nos vemos conversando com Bob,
o homem. Bob filho. O pai de Bob aparece muito no livro, um homem frio e
violento.
Os capítulos finais da aventura pela vida de Bob Mould são
dedicados à revelação que ele teve ao perceber que queria viver a “cultura gay”
de maneira intensa. Segue-se uma descrição detalhada de conversas, festas e até
noite de sexo de um homem de quarenta anos descobrindo tardiamente a alegria de
cair na balada.
Trezentas e tantas páginas depois fica uma imagem carimbada
na cabeça, que é a mesma que ficou depois de ver “LoudQuietLoud”, filme sobre a
reunião dos Pixies: de que a graça não está no que os olhos não veem, mas no
que os ouvidos de fato ouvem. Nossos ídolos são homens e não deuses.
Abraço, Bob.
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